quinta-feira, outubro 20, 2005

O consenso, o adestramento, a mesmice, a educação e a morte do intelectual

"NELSON ASCHER

A morte do intelectual

As mães e avós de antanho tinham razão: mimar crianças as estraga. E mimá-las demais as estraga absolutamente. Como o nicho ecológico da correção política -seu berçário e asilo- é, do jardim de infância às universidades, o sistema educacional, é nele também que brotou e se enraizou a revolta contra tais constatações milenarmente testadas e comprovadas.
O processo educativo, previamente considerado uma catequização de selvagens, uma domesticação de feras perigosas, transformou-se hoje na extensão do aleitamento materno aos adolescentes que, por seu turno, mantêm-se oficialmente nessa faixa etária deleitosa e dilatável até quase vésperas da aposentadoria precoce.
Nos países ricos, onde a praga em questão assumiu dimensões pandêmicas, mestres e educadores vêem como um dever central não humilhar o corpo discente, dever que, entendido no sentido amplo, equivale a não lhe arranhar nem a epiderme da auto-estima, por exemplo, apontando que se cometeu um erro de tabuada aqui, de concordância verbal ali.
Evidentemente repreender um estudante ou puni-lo pelo que quer que seja está fora de questão, mas, ademais, tampouco é lícito, segundo os mestres e educadores acima, conceder recompensas diferenciadas a quem alcance resultados diferentes. A igualdade de resultados tornou-se obrigatória. Todo bebê, púbere, adolescente, jovem ou hippie grisalho, tem o direito inato e perpétuo a ser o primeiro da classe, assim como as garotas de qualquer idade, mesmo antes do spa, da academia ou da plástica, conquistaram o direito irrevogável a serem top models, já que todas, graças a alguma divindade igualitária, são naturalmente lindas. E quem discorde é um porco machista ou, pior, pecado dos pecados, culturalmente insensível.
Uma das razões disso é que, de tantas instituições criadas ou consolidadas durante a modernidade, a única nunca sistematicamente contestada ou sequer questionada é o sistema educacional. Às vezes talvez possa até sê-lo neste ou naquele detalhe contingente, mas, em sua essência, jamais.
A educação, sobretudo se pública, universal e gratuita, passou a ser tomada como um bem supremo -e a tal ponto que a primeira (e última) linha de defesa a que recorrem os apologistas de tiranias estatizantes se resume em afirmar que, não obstante a falta de alternância e alternativas no poder, um ou outro campo de trabalhos forçados, o paredão ocasional, elas se redimem oferecendo de graça escolas e hospitais aos súditos. Que seus professores sejam amiúde semi-analfabetos e seus médicos, aos quais chega apenas quem sobreviva às filas de espera ou disponha de amigos simpáticos e de bolsos fundos, tenham uma competência questionável, bom, tais minúcias em nada afetam a santidade das intenções de base.
No entretempo, parcelas crescentes do ensino vêm sendo colonizadas pelo conceito de "educação". A meta do ensino consiste em transmitir aos alunos tanto um conjunto de informações úteis como os pré-requisitos metodológicos que lhes permitirão, de início, assimilá-las e, em seguida, saírem por conta própria em busca de outras.
Quanto à educação, esta apresenta metas ambiciosas como, em gerações anteriores, a formação de patriotas leais, depois a de cidadãos exemplares e, agora, a de seres humanos que pensem o que convém pensar, nem um pouquinho aquém, nem um pouquinho além e, principalmente, de forma alguma, algo distinto ou contrário. Para que martelar a regra de três na cabeça de um coitado quando o prioritário é dotá-lo de uma "consciência social", levá-lo a apoiar boas causas, militar por um mundo solidário, defender o verde, não comer alimentos transgênicos, votar certo nas eleições e plebiscitos? Para que perder tempo com discussões se, através de intérpretes autorizados e diplomados, os fatos sempre falam por si sós?
Mais relevantes, porém, do que razões ou causas são as conseqüências do paradigma educacional, das quais, embora haja uma infinidade, a que no momento me interessa é a morte não da intelectualidade, uma categoria que prolifera sem cessar, mas, sim, na acepção que, da Renascença até a Primeira Guerra, os séculos deram ao termo, a do intelectual.
Se os intelectuais outrora eram, entre outras coisas, indivíduos que "diziam a verdade na cara do poder", eles se destacavam igualmente por deduzir qual o poder que, em cada circunstância, cabia desafiar, pois não raro se tratava daquele controlado menos pelos governos do que por seus pares. Eles desempenhavam o papel voluntário de, defendendo opiniões antipáticas, insurgirem-se contra as unanimidades aparentemente democráticas da intelectualidade e da opinião pública.
Não é de hoje que se confundir no rebanho de colegas e, repetindo o que a maioria quer ouvir, bajular a platéia rendem pontos, afeto e sinecuras. Se bem que os antigos intelectuais fossem tão humanos quanto o resto da espécie, seu afã de, eclipsando a prudência e o corporativismo, fazer perguntas inconvenientes constituía a pedra angular do mercado livre de idéias.
O Leviatã educacional e a intelectualidade seguem, para abusar da expressão imortal de Noam Chomsky, se especializando na manufatura do consenso. Acha-se atualmente em toda parte, nas escolas, na academia, entre artistas, nas publicações mais diversas, um conformismo que antes somente regimes totalitários pareciam capazes de instaurar. E os instrumentos com os quais se atingiu este sucesso suicida, em vez do cárcere ou da sala de tortura, foram a abolição da competitividade, a premiação da inapetência, a desconfiança em face do individualismo e o desestímulo à curiosidade."