quarta-feira, janeiro 05, 2005

CIDADE BOU-BOU

Vladmir Ilitch Lênin

Cidade Bou-bou ainda vai me render homenagens, e se lembrará do dia em que eu desembarquei aqui, anônimo, pobretão e aidético. Estátuas se erguerão em minha honra e um feriado no mês de junho marcará esta data. Sim, Bou-bou se orgulhará pois hoje começa minha saga para a glória, minha caminhada para a consagração, será o fim da apatia, e o início da grande temporada heróica que eu e minha linhagem daremos início. Mulheres me procurarão para foder e ter filhos, meu nome será dado a centenas de bacuris que nascerão a partir de hoje. Mulheres passarão a mão em meu pau em plena rua, nos bares elas abocanharão minha piroca enquanto tomo uma cerveja e chupo um peitinho zerado.
Sim, é hoje, hoje começa a minha jornada, a saída da mediocridade, o dia em que me consagro herói de uma raça, hoje é o dia da libertação, pois vou matar.
Caminho olhando para o horizonte, para não ser notado. Todo cuidado é pouco, nada de movimento brusco, as câmeras estão por todo lugar, posso levantar suspeita, ser agarrado antes de completar a tarefa. Um cigarro me faria parecer mais normal, me faria parecer neurótico, subserviente como todos os outros. Ascendo o cigarro e com uma olhada, dou uma conferida na mochila, ajeitando-a nos ombros. Sigo pensando no plano, nada pode dar errado, afinal o esquema é simples, entro na LAN HOUSE “VÁ PARA ONDE QUISER”, pago antecipadamente meia hora de viagem no tempo, e antes de me conectar insiro o vírus 06061975 na rede, um vírus que venho trabalhando a anos, e que burla o firewall de proteção da Voyagenet, a rede de viagens no tempo. Assim poderei alterar o passado, quebrando o sitema de filtros e monitoramento que não permite a interação com o passado, apenas a apreciação do mesmo. Estou seguro, no último teste do vírus, consegui chegar no camarin do Jim Morrison e dá-lhe uma bela dedada no cu. A cara dele me deixou desconfiado, acho que a biba gostava de rola.
Sigo calmamente, controlando o nervosismo e a sudorese, naturais de minha raça negra. Percebo que já anoitece, faltam 13 minutos para o crepúsculo, e devo chegar na LAN antes disso. Mantendo o rítimo e a cabeça no lugar, tudo dará certo, nada pode contrariar o plano, estudei minuciosamente a vida daquele filhodaputa e sei muito bem onde ele está.
Entro na LAN e imediatamente aquela voz mecânica, insuportável, pergunta para onde vou. Ignoro o robô, entro no módulo JOTABAC 06 da Voyagenet, visto o traje de deslocamento temporal, insiro o cartão chipado que desconta a quatro horas de viagem, abro a mochila, retiro o pacote-surpresa que levarei para o meu amiguinho e coloco o pacote dentro de meu traje, também pego um velho revolver e guardo comigo. No painel de controle da Voyage, programo a saga, digito as latitudes e as longitudes de minha jornada. Farei duas viagens, para a primeira, usando o comando de voz, ordeno à máquina que me envia para o dia 13 de agosto de 1984, às 17h53 minutos. Para a segunda, ordeno que me envie para o dia 06 de junho de 1975, ás 13h00.
Antes de apertar o botão vermelho do módulo de viagem JOTABAC, retiro da mochila minha garrafinha de cachaça e dou duas boas talagadas na mardita. Retiro o cartão chipado dos créditos e insiro o cartão virótico que irá burlar o sistema de segurança, que me tornará um herói. Com o punho cerrado, bato violentamente no painel. Lá vou eu...
13 de agosto de 1984, 17h53m01s, desembarco como um vômito na cidade de São Bernardo, me aboletando todo na estradinha de terra. Se tem uma coisa que ainda não está aperfeiçoada nesta traquitana de merda é o desembarque em movimento, a Voyage nos joga aleatoriamente, é uma cagada. A cachaça ajuda a absorver o impacto.
Levanto-me rapidamente, limpo a terra vermelha de minha calça jeans, arrumo minha cabeleira dando uns tapinhas no black power que cresce lento, muito lento, e parto para o centro da cidade seguindo pelo meio fio da Anchieta esburacada.
Já é noite quando paro na frente do sindicato. Do outro lado da rua, nos botecos, o movimento é flutuante, as pessoas tomam uma e voltam para a assembléia, saem da assembléia e tomam uma, e ficam nesta rotina de atravessar a rua para lá e para cá enquanto eu me encosto num poste e espero. Meu alvo demora, intelectual, prolixo, hipócrita, mestre da demagogia, faz de tudo para não ser flagrado bebericando com os peões de fábrica. Ele articula com um, com outro, e da janela do terceiro piso sempre dá uma olhada nos botecos pra ver se estão mais ou menos vazios. Neste tempo eu o ouço falando ao microfone, pedindo uma questão de ordem e tudo o mais.
20h38m16s, já não era sem tempo, o alvo surge, vem sozinho, fugindo do prédio, bem na hora em que todos lotam o auditório para as votações finais da assembléia. Ele passa por mim, e eu me avantajo sobre ele abraçando-o, cruzando a rua em direção ao bar.
– Doutor Fernando! – Eu disse.
– Olá jovem, agora não posso, volte para a assembléia.
– Sim, volto já, mas antes eu queria lhe dizer o quanto aprecio a sua trajetória política, acho que o senhor daria um bom presidente... – O sorriso dele se abriu de ponta a ponta e imediatamente a simpatia tomou conta do filhodaputa, seus olhos brilhavam.
Entramos no bar, bem lá no fundão, com ele falando do seu exílio, da redemocratização do país e da importância de articular a união dos estudantes, dos trabalhadores e dos intelectuais, fala da organização da economia...
– Mas Doutor, o senhor pode mais, o senhor põe na cabeça o seguinte, estamos com um pezinho lá no século XXI, as coisas vão mudar muito, o senhor nem imagina, e nesta perspectiva, só mesmo um intelectual, um doutor, um falador de línguas, um homem viajado como o senhor poderia encarar esta parada. O senhor é de esquerda, o senhor é bom, cara!
– Você acha que eu posso? – Me perguntou o pulha, rindo, entornando mais um rabo de galo, olhando pra mim de um jeito muito esquisito.
– Sim, e o senhor já deve ter pensado nisso né? Olha só, eu trouxe um presentinho e gostaria muito que o senhor aceitasse, é uma camiseta do Lênin, o senhor gosta do Lênin, não?
– Muito, (glup), muito.
Abri o pacotinho já sentindo o total sucesso de minha empreitada, todas aquelas mulheres, as estátuas e tudo o mais, enquanto o Doutor chama mais uma cana, agora acompanhada de um torresminho e uma cerveja quase quente.
– Olha Doutor, veste aí, quero saber se o número ta certo, veste aí! – Ele morde o torresminho e enfia a cabeça na camisa.
– Jovem, acho que você acertou, ta perfeita pra mim, e esta frase então: “Sem teoria revolucionária não existe movimento revolucionário”, é uma das que mais gosto, obrigado, posso te dar um beijo? – E ele veio pra cima de mim, com aquela boca murcha, fazendo biquinho e barulhinho: tetetete, tetetete... Na hora pensei ter ouvido um solo de sax, daqueles clipes de viado que tinha nos anos 90, e quando vi, já tinha dado um gancho de direita bem no queixo do pederasta!
– Ô mano, tá loco!? Tu bateu no Doutor – Gritou o Bigode, dono do bar.
– Eu, louco? O filho da puta queria me beijar, e quer saber do que mais, isso não estava nos meus planos, mas já que a merda está feita, vou aproveitar e botar pra fuder! – E enchi o Doutor de porrada.
Depois de dar alguns chutes no estômago e joalhadas na cara do maldito, fui controlado pelo bigode enquanto uma putinha que estava no bar quando entramos, já trazia metade da assembléia pra me catar. Olhei pra rua e vi aquela massa de peões correndo, babando a minha morte, com a Piva gritando: Olha lá, é ele, é aquele negão lá, olha lá, pega ele, pega ele!
O Doutor estava se levantando, cuspindo sangue quando o peguei pelo colarinho e o puxei para os fundos do bar. Fui rápido e enquanto corria, chutando garrafas vazias, acionei o upload da Voyagenet, desaparecendo juntamente com o doutor, num golpe de vista.
06 de junho de 1975, 13h, Praça da República, São Paulo. Mais uma vez como um vômito, me aboleto, agora eu e o doutor, pelo asfalto quente da cidade que logo em breve será mais conhecida como cidade Bou-bou. Caí com a cara no chão, sentindo a pancada e o mormaço queimar meu rosto. Assim que me recuperei do baque, percebi a gritaria, as explosões de bombas e o trote de muitos cavalos. O Doutor estava logo atrás de mim, com uma cara de idiota, filosofando, tentando entender o que acabara de acontecer. Puxei o panaca novamente pelo colarinho e o tirei do chão.
– Jovem, que merda é essa?
– Cala a boca e corre!
– Mas nós estamos indo na direção contrária! O que é isso?
– Não reconhece não? Aqui é a Praça da República e nós estamos no meio de um confronto entre estudantes e o exército. É a ditadura batendo forte, coisa que você não viu quando estava na frança!
– O Doutor pestanejou por alguns segundos.
– Mas é impossível! Nós estamos em 84! Eu devo estar sonhando!
– Cala a boca, Doutor!
E continuamos correndo, desviando de pedras, bombas de gás e alguns cavalos, até chegarmos bem perto de um posto de comando do exército.
– Jovem, o que é que você pretende?
– Nada, só quero te dar um susto.
– Susto? Estou cagando nas calças.
– Mas isso não é nada cara, olha só a camisa que você ta usando!
– Meu deus – O Doutor olhou a camisa e se peidou todo.
– Deus! Deus não ta com você não, agora que está com você é Lênin!
E pego o velho revolver e enfio na cintura de Doutor Fernando, empurrando-o com toda a força. O cara caiu bem na frente de um capitão magrelo, com cara de carrasco. O Doutor se levantou e começou o nhenhenhê, olhando pra mim, escondido atrás de uma árvore.
– Senhor, é um engano! Essa arma... essa camisa não é minha!
– Comunista, né? E ainda tem a cara de pau de vir fantasiado, e que porra é essa aí na cinta? Pois bem, vou mostrar pra você como é que se brinca.
O Doutor Fernando olhou pra mim, choroso e perguntou o por que?
– Você quer saber mesmo o motivo?
– Sim! O que foi que eu fiz?
– Nos anos noventa eu desperdicei a minha juventude inteira lutando contra o seu governo! Eu poderia ter feito outra coisa de minha vida! A vida de todo mundo poderia ter sido diferente, e agora vai ser.
O capitão sacou seu revolver e deu um passo a frente. O Doutor correu em sua direção, implorando piedade. O capitão encostou o bico do pau de fogo bem no meio do nariz do filhodaputa.
– Morra, comunista de merda!
O asfalto ferveu e secou rapidamente aquele sangue sujo.
A camiseta de Lênin permaneceu intacta, nem sequer um pingo.

Jairo Costa

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Caralho! essa é a previa do "Cidade..."
Putz! Bom demais, meu velho!
Sem porra de demagogia do cacete:
Bom demais!...arf!

E digo mais, gosto do andamento acelerado,
Allegro con brio! Falo do ritmo e do controle do palavrório, aprimorado ao longo do tempo.

Coisa da maturidade...

É isso aí, a gente se fala depois, durante a bebeção de cachaça.
Forte abraço.

Dalton.

1:14 AM  

Postar um comentário

<< Home